Um mundo a ser transformado
Jesus anunciou a realidade do Reino de Deus, tão grande que foram necessárias comparações, as parábolas, para aproximar as pessoas de tal realidade e comprometê-las com seu crescimento. O Reino está presente no mundo e haverá de crescer cada dia mais, primeiro com a força da graça de Deus, mas também com nossa colaboração. A Igreja anuncia e faz presente este Reino de Deus, dando aos homens e mulheres que aderem ao Evangelho de Jesus a possibilidade de viver, desde já, as realidades da plenitude do tempo em que Deus será tudo em todos (Cf. 1 Cor 15,28). Até lá, “muita água deverá passar debaixo da ponte”, pelo que a tarefa assumida pelos cristãos se torna exigente e comprometedora.
Como estar presentes num mundo tão desafiador, com uma escandalosa inversão de valores, cujos efeitos de multiplicam e assustam tanto? Como mudar o rumo, quando vemos com clareza que se escorrega para crises cada vez mais profundas? Como se decidir de novo a sair do caos da violência e da desagregação social? Qual será a presença qualificada e efetiva dos cristãos no meio de tantos problemas? O Espírito Santo nos inspira e com docilidade desejamos seguir suas inspirações, sem omissões nem precipitações.
O Sermão da Montanha, cuja leitura acontece durante este período na Liturgia Dominical da Igreja, é chamado “Carta do Reino”, como a Constituição do Reino de Deus. Quem desejar entrar neste Reino e viver seus valores, pode começar com as Bem-aventuranças (Mt 5,1-12), para depois saborear as palavras que brotaram da boca do Senhor, treinando para que uma sadia avidez nos conduza a degustá-las e colocá-las em prática.
Duas realidades da natureza se prestam ao anúncio do Reino de Deus e à prática do Evangelho em todos os tempos, a saber, o Sal e a Luz (Mt 5,13-16). As parábolas são breves e incisivas, portadoras de sabedoria, como só do Senhor Jesus podem vir. Sal da Terra e Luz do mundo, assim deve ser o discípulo do Reino, esta é a vocação do cristão.
O sal comparece muitas vezes na Escritura e nas palavras de Jesus. Sal remete a gosto, sabor, que, por sua vez, conduz à sabedoria. O sal, na medida certa, faz com que os alimentos ganhem seu próprio sabor. Ele faz vir à tona o que existe de melhor nos alimentos. O sal, posto com exagero na comida, acaba fazendo mal. Não se trata tanto de senti-lo, mas permitir que ele faça aparecer o gosto das coisas. Conheço pessoas discretas em seu modo de viver, mas profundas em palavras e atitudes, carregadas de sabedoria, sem as quais a vida ficaria insossa. Muitas delas sabem fazer as observações certas na hora certa, escutam bastante antes de tirar conclusões, medem com prudência suas intervenções e fazem o mundo ser melhor. Fazem lembrar a recomendação de São Paulo: “Tratai com sabedoria os que não são da comunidade, aproveitando bem o momento. Que vossa conversa seja sempre agradável, com uma pitada de sal, de modo que saibais responder a cada um como convém” (Cl 4,5-6). Carecemos de mais gente “com sal”!
O excesso de tempero, passado à vida cotidiana, pode alertar-nos para o risco dos muitos fanatismos presentes em nosso tempo. Um protagonismo que pretenda fazer dos cristãos os proprietários do mundo é fadado ao fracasso. Somos chamados a ser servidores, homens e mulheres qualificados e ao mesmo tempo cheios de simplicidade.
Luz do Mundo! Jesus é a Luz do Mundo (Jo 8,12) e quem o segue não anda nas trevas. Quando fomos batizados, uma vela acesa foi entregue para significar uma missão confiada a cada cristão, chamado a iluminar as estradas da vida. Os que foram iluminados por Cristo na graça batismal são chamados a uma missão semelhante àquela do Senhor, para que a luz se espalhe. O bom exemplo edifica e arrasta as pessoas, atraindo-as irresistivelmente. O testemunho cristão atrai e transforma.
Mas também aqui se faz necessário observar que não fomos feitos para ofuscar quem quer que seja. Cristão não é feito para aparecer, a modo de desequilibrado vedetismo, mas chamado a conduzir, pelo seu comportamento, as pessoas ao próprio Deus. “Assim também brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Testemunho bom é aquele que conduz à fonte! Duas tarefas desafiadoras a serem assumidas pelos cristãos.
A Palavra de Deus, no Profeta Isaías, pode abrir-nos uma das formas bem concretas para ajudarmos o mundo a ser melhor: “Se tirares do teu meio toda espécie de opressão, o dedo que acusa e a conversa maligna, se entregares ao faminto o que mais gostarias de comer, matando a fome de um humilhado, então a tua luz brilhará nas trevas, o teu escuro será igual ao meio-dia” (Is 58, 9-10). O escândalo cotidiano da opressão dos mais fracos tem exigido da Igreja, e Papa Francisco, em primeira linha, tem alertado a todos, uma nova atenção e criatividade da caridade.
O apelo se dirige a todos, pois há muita falta de gosto e de sentido para a existência, assim como tanta escuridão, bem perto de nós. Referindo-se à situação econômica do mundo, diz o Papa: “Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do “descartável”, que, aliás, chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, “sobras”. Os excluídos continuam a esperar. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma (Evangelii gaudium 53-54). É para começar já!
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo da Arquidiocese de Belém – PA