O Reino de Deus e sua justiça
Nos dias de Carnaval voltam às ruas fantasias de reis e rainhas, para que o “reinado” de “Momo” se estabeleça, e “tudo acabar na quarta-feira”. Volta então o quotidiano, com suas lutas, tristezas ou alegrias. Muitas pessoas precisarão de muitos fins de semana, com farras, bebibas ou baladas para se desafogarem, seja qual for o tempo do ano. E a vida vai adiante, como se fossem necessários espasmos de exuberância, barulho ou exagero. É o reino da sensibilidade e da superficialidade, ao qual arriscamos ficar acostumados. Nasce no coração de muitas pessoas a pergunta a respeito de uma maior continuidade de sentimentos, marcada pela serenidade. A resposta não está no barulho ou na correria, mas dentro do coração e mais alto, no ponto de chegada das escolhas a serem feitas. Quando estas se realizam em torno de valores consistentes, tudo muda. Divertir-se passa a ser partilha de vida, a alegria brota de dentro e contagia, as festas deixam de ter o gosto amargo da ressaca ou da vergonha e a felicidade verdadeira se instala.
Jesus se proclamou Rei e anunciou que seu reino não é desse mundo. Sua paixão era o Reino de Deus. Fala de Reino dos Céus, usa inúmeras parábolas para dele aproximar as pessoas, mostra-o presente dentro e perto de nós, suscita vigilância em seus discípulos para a sua chegada. Um dia, é nossa esperança e certeza, Ele virá glorioso para julgar os vivos e os mortos e o seu Reino não terá fim. Até lá, os cristãos têm a tarefa ao mesmo tempo exigente e gloriosa de anunciar este Reino. Sua vida há de ser de tal modo coerente que as pessoas se sintam atraídas a ponto de aderirem ao Senhor e ao seu Reino. Não é necessário competir ou guerrear com os reinos do mundo, mas implantar os valores do Evangelho, que acolhem e elevam todas as realidades humanas, dando-lhes sentido e rumo.
Da própria natureza (Mt 6,24-34) o Senhor tira comparações para explicar o Reino de Deus. Quando tanta gente tem necessidade de se enfeitar ou se maquiar, em busca de fantasias para o ano inteiro, o Senhor faz voltar os olhos para as flores do campo, que se vestem melhor do que Salomão ou todos os reis da terra. São simples, tirando da terra só e tão somente o que precisam para serem vivas e bonitas. Nelas o Pai do Céu inscreveu uma harmonia que nenhum artista consegue imitar. Olhando-as, nasce nas pssoas apaixonadas pelo Reino de Deus um bom gosto diferente. Em torno de si, a casa, a roupa ou o ambiente começam a ficar diferentes, para melhor, porque elas existem. Sem exageros, saem plantando uma ordem nova, sem imposições, recolhendo o que existe de bom, integrando pessoas e coisas. Sua presença não pesa, mas constrói relacionamento com os outros. Seu jeito de viver, antes de analisar ou criticar, recolhe o bem e a beleza.
Sabemos que muitas pessoas “curtem” a natureza, mas a contribuição dos cristãos é diferente. A poesia da vida nasce do relacionamento com Deus e a justiça de seu Reino. A natureza não é divinizada, mas acolhida e amada por pessoas que fizeram escolhas de vida, recebendo o chamado a seguir Jesus e os valores do Reino de Deus. Não vão em busca de forças extraordinárias, mas descobrem o extraordinário da vida no relacionamento com Deus.
Também o “reino” animal é carregado de lições que apontam para o “Reino de Deus”. Os pássaros dos céus, que não semeiam, não colhem nem ajuntam em armazéns (Cf. Mt 6, 26), são sinais do amor com que Deus cuida dos seus. Olhar para eles e descobrir as lições que o Senhor nos oferece é sabedoria! Confiança, liberdade, entrega! Asas que se abrem e muitas pessoas até encontram jeito de “voar”, com instrumentos esportivos que possibilitam sentir o gostinho de tais alturas! Entretanto, maiores altitudes podem ser alcançadas mesmo com os pés no chão, por quem se entrega confiante nos braços do Pai, vivendo bem cada momento presente, ouvindo o apelo do Senhor: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá sua própria preocupação! Para cada dia bastam seus próprios problemas” (Mt 6, 34).
Indo além de plantas ou pássaros, Jesus remete seus discípulos de todos os tempos à escolha que decide tudo: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 33). Não somos ingênuos, pensando que Deus estará à nossa disposição para oferecer roupa e alimento, mas sabemos que sua Providência Santíssima age e se realiza também através de nossas escolhas diárias. Buscar a justiça do Reino de Deus quer dizer coerência com a verdade e retidão no agir. Se assim nos decidimos, o espaço está aberto para que Deus realize sua obra. A culpa da falta de comida ou de roupa, casa, abrigo, apoio, não está em Deus, mas nas estruturas injustas que se instalaram entre nós e que não correspondem em nada com o plano por Ele estabelecido. O paraíso terrestre, descrito no livro do Gênesis, continua sendo a referência para quem quer conhecer o projeto original! De lá para cá, muito estrago foi feito e muitas tarefas se apresentam para quem quer optar pelo que Deus pensa.
Na próxima semana, a Igreja inicia a Quaresma e lança em todo o Brasil a Campanha da Fraternidade, que toca num tema atual e desafiador, o tráfico humano. Não corresponde ao plano de Deus as pessoas serem transformadas em mercadorias, ou prostituídas. Atenta contra o Reino de Deus crianças ou jovens e adultos serem negociados para transplante de órgãos. Causa vergonha, revolta, e comoção que grita por soluções o tráfico de pessoas para trabalho escravo! Tudo isso clama por Reino de Deus! Desejamos contribuir para que nasça uma nova consciência social e todas as pessoas de boa vontade se unam para vencer esta terrível chaga social. A Campanha da Fraternidade quer ser mesmo uma Campanha de opinião pública, para suscitar novas práticas de relacionamento entre as pessoas.
A justiça do Reino de Deus exige que as pessoas sejam mais tratadas do que as plantas ou os animais! Sem desvalorizar a natureza, é hora de dar um salto de qualidade no relacionamento social. Afinal, no último dia da criação, na belíssima visão do Livro do Gênesis, foram criados o homem e a mulher e só deles se disse “à sua imagem e semelhança” (Cf. Gn 1, 26-31). Não permaneçamos inativos ou imóveis diante de ações que vilipendiam a beleza da obra de Deus. Esperamos um tempo novo e desejamos construí-lo juntos!
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo da Arquidiocese de Belém – PA